ENFIM KARAKOL E AS MONTANHAS DO QUIRGUISTÃO


Chegar às montanhas do Quirguistão é uma verdadeira aventura, apesar de não ser tão longe da capital Bishkek em termos de quilometragem. São apenas 400 quilômetros. Mas, é preciso um dia inteiro de estrada margeando o imenso Lago Issyk Kul, atravessando campos, vilarejos, povoados e dividindo a estrada vez ou outra com rebanhos de animais que caminham sem pressa.

Depois de oito horas de estrada - interrompidas por uma visita a Torre de Burana, para um rápido almoço, para assistir uma partida de Kok Boru e para conhecer o Museu dos Petroglifos de Issyk Kul - enfim aparecem as placas sinalizando a pacata cidade de Karakol que serve como base para a exploração das montanhas Tian Shan e do vale das águas termais de Altyn Arashan.


Altyn Arashan, no Quirguistão.

A CIDADE DE KARAKOL


Karakol em si, não oferece grandes atrativos, apesar de ser a quarta maior cidade do Quirguistão. Tem população de apenas 75 mil habitantes e uma vida muito rural. Esse vilarejo singelo aos pés das montanhas Tian Shan começou a ganhar força em 1869, quando um posto militar russo foi estrategicamente montado para auxiliar na tomada da Ásia Central. Sua posição geográfica foi o estopim do desenvolvimento. Além disso, fica a apenas 150 quilômetros da fronteira com a China e em 1880 recebeu muitos muçulmanos chineses, chamados de dungans, que fugiram do país durante a guerra e por ali se estabeleceram.

Hoje, Karakol é uma cidade parada no tempo. Guarda com nostalgia as lembranças do período de dominação soviética quando se chamava Przhevalsk. Suas casas coloniais de madeira, com um ou dois andares, que parecem casinhas da vovó remetem ao período czarista. Só que agora estão envelhecidas, de aspecto decadente, sem muita conservação. Mas, já foram elegantes e abrigaram muitos militares russos do alto escalão. Em 1991, quando a União Soviética se desmantelou, ela voltou a se chamar Karakol.

As casas de Karakol ainda que decadentes guardam lembranças dos tempos áureos.

O prédio de arquitetura mais curiosa em Karakol é a Mesquita Dungan. É uma das poucas construções fora do padrão russo. Foi feita em 1904, após a chegada do povo da etnia dungan na região. Ela foi construída em madeira, com encaixes que não utilizam pregos. Seus exóticos telhados retorcidos são apoiados sobre 42 pilares coloridos. É pintada em várias cores e ornamentada com motivos florais. No período soviético passou a funcionar como armazém e agora é novamente usada pelos muçulmanos da região na celebração de cultos. Mas, seu estilo arquitetônico remete aos templos budistas da Mongólia. Foi a única das oito mesquita da cidade que conseguiu sobreviver a era bolchevique. Todas as outras foram destruídas pelos russos.

A exótica Mesquita Dungan e seu jardim repleto de macieiras e roseiras.


Pertinho dali fica a Catedral Ortodoxa da Santíssima Trindade com suas charmosas torres coloridas enfeitadas por cinco domos dourados em formato de cebola. Ela também foi construída em madeira, mas em estilo russo. Foi feita em 1869 quando o posto militar russo começou a ser estruturado. Um terremoto causou grandes estragos na igreja em 1889 e ela precisou ser refeita. Nesse período, uma yurta servia para congregar os fiéis. Mais tarde, durante a revolução, ela foi usada como escola, como armazém e até como teatro e seus domos foram removidos. Finalmente, em 1991, voltou a ser usada como igreja.

Catedral da Santíssima Trindade

A cidade de Karakol se espalha ao redor de uma praça principal que fica em frente ao prédio da Universidade de Issyk Kul. Na esquina, uma estátua de Lenin continua apontando para o caminho do sucesso. A escola. Os quirguizes agradecem aos russos pela introdução do estudo obrigatório no país. Dizem que esse foi o maior legado russo ao povo nômade do Quirguistão.

Universidade de Issyk Kul, em Karakol, Quirguistão.

Lenin no seu pedestal indicando o caminho da escola

Na esquina da universidade o prédio do correio.

Do outro lado da rua, prédios do governo de arquitetura russa de frente para uma larga avenida

O comércio local é muito precário. Há uma região no centro chamada de Kumtor Shopping Centre. Algumas lojas de roupas, bares e mercearias dividem espaço ao longo de um quarteirão. Singelo demais. De uma simplicidade absoluta. Se a capital Bishkek já é limitada, imagine essa pequena cidade no meio das montanhas. 

Mercado de Karakol.

Pelas ruas, as crianças vão e vem sozinhas. Observe que suas feições mesclam traços chineses com mongóis. Não abrem muitos sorrisos nem dão atenção a quem passa por elas. Tem comportamento retraído e desconfiado. Mas, nada que um bom sorriso não consiga reverter. 

Do olhar assustado ao sorriso aberto.  

A vida simples em Karakol.

Menina saindo da escola com seu lindo uniforme e flores no cabelo.

Um pouco mais afastado do centro, mas numa distância que dá para ir caminhando, pois a cidade é pequenina, fica o Parque da Vitória. É um monumento russo feito em comemoração aos 70 anos da vitória sobre os nazistas. Tem vários bustos de militares que se destacaram durante a guerra. É um parque onde a população local costuma fazer passeios e levar as crianças para brincar entre as árvores. É imponente. Bem ao estilo soviético. 

Parque da Vitória

Karakol é uma cidade fria no inverno. Com o intuito de reduzir o vento, proteger as casas e acalmar as baixas temperaturas, os russos plantaram Bétulas pela cidade inteira quando chegaram. As árvores são lindas e desenham grandes corredores. As casas praticamente não têm muros, mas cercas vivas formadas pelas velhas Bétulas de troncos esbranquiçados.

Os corredores de bétulas são uma das principais características das ruas de Karakol.

Vale conferir o Museu Histórico de Karakol. É preciso ter alguém para auxiliar na visita, pois não há nada escrito em inglês. O museu funciona na casa de verão de uma família de mercadores que foi tomada pelos russos e mais tarde transformada em um museu. Há muitos objetos de bronze e utensílios retirados do lago Issyk Kul, uma ala com animais empalhados da região, exibição de petroglifos, mostras de tapetes feitos nas montanhas do Quirguistão, trajes típicos do povo, instrumentos musicais usados por eles e até uma yurta.

Museu Histórico de Karakol.

O interior de uma yurta exibida no museu.

O HOTEL ESCOLHIDO

Como tudo é muito básico na cidade, os hotéis acompanham essa linha. Escolhemos o Hotel Amir por parecer um dos mais bem cuidados de Karakol. A escolha foi adequada. Quartos de mobiliário muito simples, com banheiro privativo e por sorte tudo bem limpo. Café da manhã dentro do esperado. Poucas opções, mas serviço atencioso. Wi Fi rudimentar. Deu para o básico. Se quiser dar uma olhada no hotel clique no link www.hotelamir.kg

SUBINDO AS MONTANHAS TIAN SHAN

No dia seguinte, muito cedo, estava programada a subida às montanhas Tian Shan. Por uma estrada pra lá de precária e sob uma chuvinha fina iniciamos a jornada num velho furgão russo dirigido por um sisudo quirguiz.

Assim iniciou o dia em direção ao vale das águas termais de Altyn Arashan

No meio do caminho, em determinado momento, havia passagem apenas para um carro. Demos de cara com um antigo caminhão de guerra descendo. Nenhum dos dois motoristas fez a gentileza de dar a passagem ao outro e o estresse se instaurou a 2 mil metros de altitude. Os carros ficaram frente a frente, os motoristas desceram e o "bate-boca" teve início. O motorista do meu veículo empurrou o outro, que revidou. Uma cena feia que não precisavamos ter vivenciado. Empurra daqui e grita daqui até que desceram todos os turistas dos dois carros para apartar a briga. O motorista do caminhão por fim entrou no carro e deu ré. Seguimos caminho com o coração na mão. No fim das contas, pelo que deu para entender, quem está subindo tem prioridade.


Estresse nas montanhas Tian Shan.


Pausa para fotografar o vale no Quirguistão. 

Depois de duas horas de muito sacolejo para trilhar pouco mais de 30 quilômetros montanha acima, num percurso perigoso, à beira de despenhadeiros, chegamos ao destino: o vale das águas termais de Altyn Arashan, numa altitude de 2.500 metros.

Vale de águas termais de Altyn Arashan. 

Como presente pelo duro trajeto trilhado, um cenário bucólico, deslumbrante, com ovelhas pastando entre yurtas e o sol surgindo no céu. Estava frio. Fomos recebidos na casa de uma família com muita gentileza e chá quentinho servido ao redor de um fogão a lenha. Dali iniciaria o trekking pelo vale. Optamos por fazer uma caminhada breve de menos de duas horas. Foi o suficiente. Muita gente opta por subir toda montanha caminhando (o mesmo trajeto que fiz de carro). Alguns trekkings são de 2 ou 3 dias, dormindo em yurtas, barracas ou casas de moradores das montanhas.

O sol foi o presente maior nas montanhas do Quirguistão.

Na volta da caminhada, pausa para relaxar em piscinas muito rudimentares de águas termais numa casa simples de madeira. Luxo zero. É um destino bacana para quem gosta de lugares intocados, virgens, sem frescura.

 Termas de Altyn Arashan.

Tanques para relaxar nas Termas de Altyn Arashan

RETORNO KARAKOL - BISHKEK

Cedinho, no dia seguinte, partida para a capital Bishkek de onde iríamos tomar o avião para o tão esperado Uzbequistão. Muitas horas de estrada pela beira do lago Issyk Kul, mas dessa vez pelo outro lado do lago. 

Descendo as montanhas Tian Shan com destino à Bishkek, contornando o lago Issyk Kul.

Yurtas dos nômades do Quirguistão nos arredores do lago Issyk Kul.

As paradas do caminho de volta foram especiais: o belíssimo Canyon Fairy Tale, uma exibição de caça com águia e um vilarejo às margens do lago Issyk Kul com parada para almoço.

O Canyon Fairy Tale também chamado de Canyon Skazka é pouco explorado, mas vale uma parada de meia hora. Fica a 110 quilômetros de Karakol. Imensas formações rochosas em arenito vermelho dão margem à imaginação. Esculturas incríveis de cores alaranjadas foram sendo formadas ao longo dos anos e receberam nomes como dragão, hipopótamo, muralha, serpente... É preciso caminhar com cuidado pois o terreno é íngreme e muito escorregadio.

 As formaçõess do Canyon Fairy Tale dão asas à imaginação

Mais alguns quilômetros e nova parada. Dessa vez para ver uma demonstração de caça com águia. Os povos nômades sempre utilizaram as águias para garantir sua sobrevivência. Elas caçam raposas, coelhos, lobos e outros pequenos animais que trazem e entregam para seu treinador. 

A cetraria é a arte de adestrar águias. Essa tradição passa de geração em geração nas montanhas do Quirguistão. Os meninos começam a aprender essa arte ao redor dos treze anos quando conseguem aguentar o peso do animal no braço, que não é pouco. O treinamento é bastante difícil. Leva anos. E, não é qualquer animal que pode ser domesticado. Alguns são muito cruéis e precisam ser devolvidos para a natureza.

 Menino de 17 anos com sua águia no Quirguistão.

É impressionante a relação de respeito e cumplicidade entre o animal e o homem. Uma parceria que começa quando os dois ainda são jovens e dura por um período de 15 a 20 anos, ou até mais. 

O rapaz captura a ave, fica com ela por alguns dias para testar se a convivência será possível ou não (depende da personalidade do animal) e depois disso inicia o treinamento. 

A ave deve ser capaz de voar livremente, procurar pela caça e voltar ao seu treinador trazendo o animal abatido. 

 Águia caçando uma raposa no Quirguistão.

Uma parceria emocionante entre o jovem quirguiz e sua águia

Depois disso, a última parada do caminho foi num vilarejo à beira do lago. Barracas montadas na beira da estrada vendendo peixes salgados, maçãs e alguns outros produtos. Movimento enorme de carros parando para fazer umas comprinhas antes de chegar em Bishkek. Gente simples e de poucos sorrisos aproveitando os dias de verão no Quirguistão.

Peixes do lago Issyk Kul

Maçãs de todo tipo

ROTEIRO NO QUIRGUISTÃO

31/08/15: saída de Almaty (Cazaquistão) e ida para Bishkek de carro. Chegada logo após o almoço com tempo para fazer a primeira exploração pela capital do Quirguistão. Hotel Hyatt Regent.
01/09/15: visita pela cidade na parte da manhã, com guia local. Almoço. Tarde passeando com amigos quirguizes. Jantar com os amigos.
02/09/15: passeio pela cidade incluindo Osk Market e praças.
03/09/15: Saída para as montanhas Tian Shan, de carro, com motorista e guia. Dia inteiro de estrada com parada na Burana Tower, pausa para assistir uma partida de Kok Boru e almoço em casa de família quirguiz. Chegada a Karakol. Hotel Amir. 
04/09/15:  Subida até o vale de Altyn Arashan, num furgão militar com motorista e guia, para fazer trekking nas montanhas e relaxar nos tanques de águas termais. Retorno no final da tarde. Jantar em Karakol.
05/09/15: Retorno para a capital Bishkek com parada no Canyon Fairy Tale, parada para ver uma demonstração de caça com águia, almoço num vilarejo a beira do Lago Issyk Kul. Chegada ao aeroporto para sair do Quirguistão em direção ao Uzbequistão. 

Yurtas na beira do lago Issyk Kul, no caminho de Karakol a Bishkek. 

Seis dias foram o tempo da visita ao distante Quirguistão, na Ásia Central. Um país sofrido, de tradição nômade, que passou por guerras, fez parte da antiga União Soviética e começa aos poucos a aprender a sorrir. Uma viagem especial para quem gosta de destinos fora da curva, paisagens naturais intocadas e especialmente para aqueles que não se incomodam com longas distâncias e pouco conforto. 

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COMENTÁRIOS

  1. Muito boa descrição do melhor que se pode encontrar e experimentar numa visita rápida ao Quirguistão ! Descrito assim apetece mesmo visitar ! E só o calor de uma descrição brasileira para encantar um português de Lisboa, como eu ! Obrigado Cláudia !

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