SOB O SOL DA ANTÁRTIDA

 

Uma rajada de vento polar confirmou minha chegada à Antártida, o continente mais gelado do planeta, mesmo que o sol de dezembro tentasse disfarçar a temperatura negativa do verão antártico ao refletir nuances de branco e azul do grande manto de neve contornado pelo oceano. Um cenário absolutamente singular. Sob meus pés, quilômetros e mais quilômetros de gelo moldado por uma massa dinâmica que se movimenta em ritmo lento, constante e quase imperceptível há mais de três milhões de anos. A natureza se exibia em seu estado mais bruto, entre icebergs de formas abstratas, atiçando minha imaginação.


Pisar na superlativa Antártida é como entrar num mundo paralelo.

Eu desembarcara num território composto por uma calota polar de aproximadamente 14 milhões de quilômetros quadrados (bem maior do que o território do Brasil), dona de uma das maiores reservas de água e gelo do planeta, no ponto de encontro dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico. E mesmo que pareça contrassenso, a Antártida ostenta um árido deserto de neve, tendo umidade relativa do ar semelhante aos desertos de areia. Seu coração é composto por um planalto de gelo, sendo desabitado, enquanto na costa a vida acontece sob o comando de pinguins, focas, baleias e algumas espécies de pássaros. Não é de se estranhar que a vida floresça tão timidamente. Afinal estamos falando de um dos ambientes mais inóspitos e gélidos de que se tem notícia, onde os termômetros já marcaram - 890C na base russa de Vostok. Já nas altitudes mais baixas, próximas ao mar, a temperatura não costuma passar de - 100C. 

Mapa da Antártida.

Tendo condições tão adversas para a manutenção da vida humana, é compreensível que o Continente Branco abrigue apenas pesquisadores sazonais de países que ali fincaram suas bases científicas. No verão, esse grupo pode chegar a 4 mil pessoas e no inverno cai para menos de 800. Moradores nativos não há. Aliás, a Antártida não é um país e não pertence a nenhum país. O Tratado Antártico garante que ninguém declare soberania sobre seu território. Permite sim, a liberdade de exploração científica do continente, em regime de cooperação internacional.

Em Porto Lockroy encontrei quatro moradoras nessa casa com museu, lojinha e correio.

Com tantas peculiaridades, claro que o turismo é bastante limitado, e esse fator é decisivo para a preservação do planeta. As expedições partem do Chile (Punta Arenas) e da Argentina (Ushuaia) apenas durante o verão - do final de novembro ao início de março - quando o clima é mais ameno. Já, nos demais meses além do frio ser insuportável e de ficar escuro por praticamente 6 meses, a água congela em um cinturão que avança por mil quilômetros ao redor do continente tornando a navegação perigosa, senão inviável. Por isso, é essencial fazer uma programação prévia minuciosa.

Noventa porcento das reservas de gelo da Terra estão na Antártida.

Para encarar essa aventura, minha escolha apontou acertadamente pela viagem a bordo do SH Vega, um navio-boutique lançado recentemente pela linha de cruzeiros britânica Swan Hellenic. A empresa é pioneira em expedições a destinos pouco convencionais de norte a sul do planeta, tendo uma trajetória de mais de 70 anos no mercado. E agora celebra sua nova fase trazendo embarcações mais intimistas e mais luxuosas.

SH Vega, novo membro da frota Swan Hellenic Cruises.

O SH Vega tem apenas 75 cabines com capacidade para 152 passageiros e equipe de 120 tripulantes. Essa exclusividade foi decisiva, uma vez que dou preferência a navios pequenos e que tenham profissionais com expertise para conduzir explorações inéditas em destinos fora da curva. 

Somado a isso, os equipamentos de última geração e poderosos estabilizadores me trouxeram segurança para embarcar na temporada inaugural do navio em uma expedição à longínqua Antártida.

Embarcando num sonho!

Num misto de alegria e ansiedade desci em Ushuaia, vindo de Buenos Aires, num voo fretado pela própria Swan Hellenic. Sem pressa, o belíssimo SH Vega aguardava pela chegada dos hóspedes no porto. 

Em linhas retas, elegantes e tons suaves, o interior do navio, assinado por um designer escandinavo, não tem como ser mais acolhedor. As suítes, de diferentes categorias, são muito espaçosas. Têm varandas com espreguiçadeiras, são bem servidas de armários e têm lareiras de realidade virtual aos pés da cama que dão aquela bossa. Algumas acomodações, até banheira têm.

Cabines elegantes e acolhedoras no SH Vega.

Na chegada, cada passageiro recebe de presente dois casacos desenvolvidos especialmente para suportar o clima polar e uma mochila impermeável com garrafa de alumínio para ser levada durante as expedições. Além disso, o Swan Hellenic também fornece botas impermeáveis, com proteção térmica, para serem utilizadas durante a hospedagem. A mala de mão agradece. Vale lembrar que no quarto andar tem uma lavanderia com máquinas de lavar e secar prontas para serem usadas. Se sujar, lave.

Casaco térmico, parca impermeável e mochila são presenteados aos hóspedes na chegada.

Em torno do objetivo comum de mergulhar em paisagens remotas e aprender, o Observation Lounge serviu para reunir os hóspedes durante os dez dias de expedição. Nesse salão central do navio - guarnecido por um bar, piano de cauda, lojinha, muitos sofás e janelões envidraçados - eram passadas diariamente todas as instruções desde procedimentos de segurança, briefing da programação e boas doses de conhecimento. Esse é um dos diferenciais do Swan Hellenic. São ministradas duas palestras ao dia por biólogos e especialistas do time de expedições sobre assuntos como vida marinha, fauna local, correntes oceânicas e histórico das bases científicas. Na hora marcada para as apresentações, as primeiras fileiras de sofás e poltronas eram rapidamente ocupadas. Tínhamos no grupo um mascote de nove anos, que era sempre o primeiro a chegar com seu bloco de notas, ávido por anotar as informações com as quais organizaria um jornal para seus colegas de classe nos Estados Unidos. Costumo dizer que o mundo é uma grande escola e beber da fonte é sedimentar camadas de crescimento pessoal.

Especialistas do time da Swan Hellenic em ação no Observation Lounge.

Conforme o navio se afastava de Ushuaia, no extremo sul da Argentina rumo ao Continente Branco, o mundo ia ficando aos poucos para trás. Eu estava prestes a atravessar o Estreito de Drake, um dos mares mais apimentados de que se tem notícia. São dois dias por essa passagem, para cobrir pouco mais de mil quilômetros, sem atracar em nenhum momento. O mantra da travessia é: “DRAKE AS A LAKE”. 

O mar nos brindou com ondas entre 6 e 10 metros na ida, o que é considerado relativamente tranquilo para as correntes mau humoradas do Drake e me comportei bem apesar do mar crespo. Na volta, as preces foram integralmente atendidas e tivemos a travessia acompanhada pelo sol, pelo vento, por mais de uma centena de baleias jubarte e o Drake se fez lago.

Travessia do Estreito de Drake em boa companhia.


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claudia@viajarpelomundo.com. Seu roteiro será personalizado e organizado por mim em parceria com uma agência da minha confiança. Enquanto eu faço a curadoria, a agência cuida de toda a operação oferecendo suporte 24 horas por dia.

Interessante, que durante o verão antártico, os dias são muito longos e praticamente não escurece. O sol some no horizonte ao redor da meia noite e duas horas depois já está brilhando outra vez. Isso quando não está nublado. Foi numa dessas madrugadas iluminadas que olhei pela janela do quarto, dois dias após a partida de Ushuaia e em êxtase me deparei com aquela vastidão branca. Eu havia chegado. Mal conseguia disfarçar minha euforia para iniciar as expedições à Península Antártica.

Um dos cenários mais espetaculares da face da Terra.

Com o auxílio de um resistente bote de modelo Zodiac atravessei entre icebergs e blocos de gelo, os poucos metros que separavam o navio de Yankee Harbour. Meu encantamento só fazia crescer. Centenas de pinguins circulavam com aquele balanço cheio de graça, sem se preocupar com nossa presença. Estavam focados em buscar pedrinhas para construir seus ninhos. Pinguins são aves que não voam, são animais monogâmicos, vivem apenas no hemisfério sul, sendo que os machos auxiliam muito na criação dos filhotes e inclusive ajudam as fêmeas a chocar os ovos. 

Pinguins-gentoo com seu bico alaranjado.

Ficar duas horas suspirando naquele paraíso foi só o começo. De volta ao Vega, eu aguardava ansiosa pelo passeio da tarde quando entraríamos na caldeira de um vulcão adormecido invadido pelo mar.

Deception Island não decepcionou com sua paisagem apocalíptica. A ilha no formato de uma ferradura abrigou até 1931 uma estação baleeira, agora abandonada. Depois disso, foi perturbada por severas erupções vulcânicas em 1967 e 1969, que destruíram algumas estações científicas. Caminhar pela praia de areia preta, ver os tanques que armazenavam óleo de baleia, o velho hangar, as poucas casas, alguns barcos desmantelados e o cemitério abandonado é como entrar num set de filmagem. Houve até quem aproveitasse a temperatura um pouquinho mais amena da água (por estar dentro de um vulcão ativo) para dar um mergulho polar e revigorar a pele.

Pisando em Deception Island.

Ao retornar da ilha sentei na biblioteca por alguns minutos para consultar livros com informações  sobre a região e degustar em silêncio o início perfeito da viagem. Num piscar de olhos o dia estava terminando. Era hora do jantar. A gastronomia do SH Vega é caprichada, tendo inclusive um chef Michelin no comando. Os jantares são servidos a la carte, diferentemente do café da manhã, almoço e chá da tarde que tem o formato de buffet. Opções não faltam. O menu tem um leque que atende de carnívoros a veganos.

Caviar servido pelo chef executivo Frederick.

Mas como alimento bom para a alma é a força da natureza, no dia seguinte, uma nevasca nutriu o Continente Branco de beleza e dramaticidade. Em meio a névoa, a expedição desceu em Danco Island onde uma grande colônia de pinguins trilhava uma rota bem definida do mar até o topo da montanha. Segui a rota apesar dos grossos flocos de neve que jorravam do céu. Lá do alto, o navio podia ser avistado em tamanho diminuto, cercado por icebergs. A minha vontade era ficar ali parada gravando na retina aquele quadro digno de Monet.

Desembarcando de Zodiac em Danco Island.

Os icebergs se formam quando as geleiras avançam pelo mar. Ao flutuar, eles se partem e lentamente são levados pelas correntes marítimas até se desmancharem pela ação do mar e pela elevação da temperatura. Apenas algo em torno de 20% de sua massa total é visível na superfície. E foram eles que impediram o navio de entrar pelo Estreito de Gerlache para alcançar Neko Harbour, uma baía descoberta pelo explorador belga Adrien de Gerlache, no início do século XX. Ter um plano B faz parte da programação em uma expedição como essa. O tempo pode virar na velocidade da luz. Assim sendo, a parada seguinte - depois de um lauto almoço e de um mergulho na piscina aquecida do navio - foi Useful Island.

Piscininha para relaxar no Swan Hellenic.

Essa ilha montanhosa ganhou o nome Useful - “utilizável” - por favorecer uma visão em 360 graus, após uma subida relativamente tranquila. As opções desse dia eram duas: hiking até o topo da montanha ou caiaque entre icebergs, pinguins e preguiçosas focas. Qualquer escolha seria certeira. Afinal, as paisagens não cansam de surpreender e arrancar “uaus”. Nem cogite pensar em monotonia. A paleta de silêncios e tons que emanam da Antártida tem o poder de preencher qualquer espaço vazio.

Useful Island.

Caiaque polar.

Para relaxar e acalmar o coração, depois dessa explosão de sensações, os hóspedes contam com um belo spa, aulas diárias de ioga, uma academia bem equipada e sauna seca com vista para uma das piscinas aquecidas e para o mar. O foco em bem-estar é levado a sério. Não faltam opções a bordo. Aliás, o tempo é que será curto para tanto viver. 

Aula de ioga no SH Vega. 

No dia seguinte, a grossa camada de neve que havia caído em Damoy Point durante a noite, não nos deixou pisar em terra firme. O Zodiac foi o aliado para um rolê sensacional nesse local descoberto durante uma expedição francesa à Antártida em 1903, sob o comando de Jean Baptiste Charcot. Nessa manhã, tivemos a temperatura mais baixa da viagem, -40C com um ventinho que potencializava o frio.

Damoy Point e no extremo direito da foto uma foca-leopardo.

Damoy Point é um porto natural que serve como entrada para Porto Lockroy, um local usado para operações militares britânicas durante a Segunda Guerra Mundial e que funcionou como estação de pesquisa do Reino Unido até 1962. 

Renovado em 1996, hoje tem um museu, uma lojinha e o posto de correio mais austral do mundo. A estrutura é operada por quatro pessoas de cada vez. Esses voluntários são selecionados através de um programa da United Kingdom Antarctica Heritage Trust (www.ukaht.org) para passar cinco meses na Antártida. Só no ano passado houve mais de 6 mil inscritos. Os voluntários também acompanham uma pesquisa que tem como objetivo testar o efeito do turismo sobre os pinguins através da contagem das aves. Metade da ilha recebe visitantes enquanto a outra metade é reservada exclusivamente aos animais. De modo curioso, os resultados até aqui são positivos para a colônia, possivelmente por afastar os pássaros que comem os ovos dos pinguins. Durante toda a expedição foi o único local em que encontrei moradores. Quatro mulheres isoladas num dos cantos mais gelados e remotos do planeta.

Porto Locroy.

O dia encerrou com um por do sol inesquecível no Canal Lemaire, um dos lugares de beleza natural mais espetaculares que já tive o privilégio de conhecer na vida. Conforme o navio avançava pelos onze quilômetros do estreito, quebrando imensas placas de gelo, a natureza ia se exibindo. Um lugar tão belo que foi apelidado de “Kodak Gap”. Tive sorte! Muitas vezes os icebergs bloqueiam o caminho e não permitem a chegada até os dois grandes picos montanhosos do Cabo Renard que emolduram o gran finale. E ali fiquei parada ouvindo o vento reverenciar o silêncio da paisagem enquanto o sol atiçava as cores no horizonte. 

Canal Lemaire.

No último dia de expedição subi ao topo das montanhas de Orne Harbour e trilhei Cuverville Island com céu azul. Os icebergs brilhavam feito diamantes, os pinguins se apressavam para construir seus ninhos aproveitando a chegada do verão e eu, sentindo o calor polar, tirei até os casacos para me despedir com leveza daquele destino que virou parte de mim. A Antártida cumpriu o papel de agregar beleza, vida, conhecimento e cor aos meus dias.

Cuverville Island.

Por fim, diante dessa vastidão branca me percebo pequena como um floco de neve e torço para que a calota polar antártica permaneça um lugar intocado para que sua missão como termômetro do mundo seja um presente para as futuras gerações.

Um universo gelado chamado Antártida.

INFORMAÇÕES IMPORTANTES

ANTÁRTIDA OU ANTÁRTICA

Adotei ao longo da matéria o substantivo próprio Antártida por orientação do respeitado Professor Noslen. Segundo ele: "Antártida é o nome do continente, ou seja, o substantivo. Já antártico ou antártica é o adjetivo". Para exemplificar: 

- Na Antártida temos estações de pesquisa.

- Há várias estações de pesquisa antárticas. 

Portanto, segui os passos do mestre mesmo que atualmente os dois sejam aceitos e amplamente utilizados.

QUANDO IR

É possível fazer expedições à Antártida apenas no verão, de final de novembro ao inicio de março. Estive no continente em dezembro e peguei temperatura entre -4 e 40C e dias lindos de sol. 

Dezembro na Antártida.

COMO CHEGAR

Os navios que levam turistas até a Antártida partem de Ushuaia, na Argentina, e de Punta Arenas, no Chile. Recomendo a empresa Swan Hellenic, pela segurança que oferece, pelo padrão da equipe de tripulantes, pelo serviço impecável e pela responsabilidade com o meio ambiente. O valor da expedição Antartic Peninsula, com duração total de 12 dias, desde Buenos Aires, é de U$ 9.900 dólares por pessoa. Para organizar sua viagem fale comigo pelo e-mail claudia@viajarpelomundo.com

LEITURAS RECOMENDADAS

A Incrível Viagem de Shackleton. A mais extraordinária aventura de todos os tempos. De Alfred Lansing. Editora Sextante.

Endurance. A lendária expedição de Shackleton à Antártida. De Caroline Alexander. Companhia das Letras.

Mar Sem Fim. De Amyr Klink. Editora Companhia das Letras. 

Silêncio. Na era do ruído. De Erling Kagge. Editora Objetiva.

DOCUMENTOS NECESSÁRIOS

Passaporte com validade mínima de 6 meses (que será carimbado na Antártida) e certificado eletrônico de vacinação contra Covid-19.

Antártida.

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COMENTÁRIOS

  1. SENSACIONAL!!!
    Com esta mordomia toda já dá para pensar em enfrentar o "friozionho"....

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  2. Parabéns, matéria deliciosa de ler e super elucidativa.

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  3. Amei Claudia. Já estou de malas prontas para a próxima expedição!

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