Uma taça do vinho Etna Rosso brindou minha chegada à Sicília, ilha italiana posicionada no "bico da bota", a meros três quilômetros da Calábria, em uma encruzilhada entre a Europa e a África. Com essa localização estratégica - banhada pelos mares Mediterrâneo, Jônico e Tirreno - não foram poucos os conquistadores que passaram por ali deixando camadas de herança cultural. Enfim era a minha vez de conhecer essa ilha-caldeirão que ferve entre costumes, línguas, culinária, arte e arquitetura, influenciada por tanta gente, passando inclusive pelos percalços da máfia, um capítulo que “dizem” ter ido pelos ares, em 1992, com meia tonelada de explosivos.
Se até bem pouco tempo a Cosa Nostra tornava a Sicília um lugar pouco convidativo, agora a ilha exibe orgulhosa suas belezas espalhadas pela extensa costa, de mais de mil quilômetros, e pelas tantas cidades ora embrenhadas nas montanhas ora espalhadas pelas planícies. Difícil mesmo é escolher por onde começar. E mais difícil ainda é definir o roteiro. Já aviso que dez dias é aperitivo. Afinal, a Sicília é a maior ilha do Mediterrâneo e seu charme é arrebatador.
A Sicília pede calma para revelar seus encantos.
CATÂNIA, MINHA PORTA DE ENTRADA
Num voo rápido de menos de uma hora, vindo de Roma (onde fiquei hospedada no sensacional Hotel de La Ville), desci na Catânia. Um ventinho de final de inverno soprava com suavidade enquanto eu localizava o carro alugado com a Sicily by Car no estacionamento do aeroporto (essencial!). As cidades Catânia, Palermo e Trapani têm aeroportos internacionais. Também é possível chegar de ferryboat na ilha, sendo a travessia de Reggio di Calabria a Messina, a mais curta.
A Catânia é uma das principais cidades portuárias da Sicília. Está posicionada aos pés do Etna, um vulcão ativo. Foi dizimada por um terremoto em 1693 e então reconstruída praticamente do zero. Sua arquitetura barroca é evidente na Piazza del Duomo, que além da emblemática catedral tem como marco central a Fontana dell’Elefante, onde um elefante de lava carrega um obelisco egípcio, e a Fontana dell’Amenano esculpida em mármore carrara. O centro histórico é relativamente pequeno e pontilhado de igrejas. Pode ser percorrido a pé.
A alguns passos dali ficam as impressionantes ruínas do Teatro Antigo, do século IV a.C. e o Castelo Ursino. Visitas obrigatórias! Tudo pode ser alcançado em curtas caminhadas. Mesmo que a Catânia não seja propriamente uma das cidades mais bonitas da ilha, ela tem um charme especial pela expressividade da arquitetura e é catalogada como Patrimônio Mundial da Unesco.
Já a culinária é ponto altíssimo. Vale lembrar que a Sicília é famosa pela riqueza de sua cozinha. Por estar localizada entre o norte da África e o sul da Europa, muitos povos deixaram ali suas contribuições, como os gregos (óleo, trigo, mel, queijo, frutas), os árabes (laranja, limão, berinjela, cana-de-açúcar), os franceses (o requinte dos pratos) e os espanhóis (jamón). Portanto, uma das marcas da gastronomia siciliana é a união da trivialidade com a sofisticação. Na Catânia, vá ao Mercado do Peixe para entrar em contato direto com a base dessa cozinha e pirar com os produtos fresquíssimos.
Você pode comer por ali mesmo na Osteria Antica Marina ou fazer uma reserva num dos tantos restaurantes da cidade. O km 0 Ristorante é famoso pelo menu degustação. Já o Il Sale Art Café é bem descontraído, na Via Santa Filomena, um reduto boêmio cheio de restaurantes simpáticos. Outra dica é o Me Cumpari Turiddu, a uma quadra do hotel Palace Catania Una, um dos melhores da cidade e ainda assim modesto. A hotelaria na Catânia é fraca, mas isso é só um detalhe. Dois dias na Catânia são suficientes para dar o start na viagem e então seguir o mergulho pelos quatro cantos da Sicília.
VALE DOS TEMPLOS E SCALA DEI TURCHI, EM AGRIGENTO
Cento e sessenta quilômetros de estrada, e em menos de duas horas, mesmo com uma paradinha para um café ou umas comprinhas no Sicília Outlet Village (uma tentação recheada de marcas de peso como Armani, Gucci, Prada, Dolce & Gabbana...) e eis que surge a sinalização para Agrigento.
Com ruas medievais estreitas encravadas num penhasco, Agrigento foi o berço do famoso escritor italiano Luigi Pirandello, prêmio Nobel da literatura em 1934. A Casa de Infância de Pirandello, hoje um museu, fica numa falésia chamada “Caos” e pode ser visitada. No mais, a cidade em si, não oferece muito além das igrejas Santo Spírito, Santa Maria dei Greci e da Duomo.
As duas grandes razões para se tomar o rumo de Agrigento são a espetacular área arqueológica conhecida como Vale dos Templos, Patrimônio da Humanidade pela Unesco e as falésias da praia Scala dei Turchi que ganharam o mundo por servir de locação para os lançamentos bombásticas de Giorgio Armani.
Nos séculos VI e V a.C. praticamente não havia diferença entre Atenas e algumas cidades da Sicília. Agrigento é a mais grega das cidades italianas. A prova irrefutável dessa conexão são as ruínas do espetacular Vale dos Templos. É verdade que muitos templos foram destruídos pelos cristãos, no século VI d.C., por serem considerados pagãos, além dos danos causados por terremotos. No entanto, ainda há alguns deles contando sua história.
O Templo da Concórdia escapou da demolição por ter sido convertido em igreja e é hoje o segundo templo grego dórico mais bem conservado do mundo, atrás apenas do Partenon. O Templo de Juno também mantém várias colunas intactas. Já Hefesto, Zeus do Olimpo, Hércules, Theron, Castor e Pólux mantém poucas estruturas em pé. Vale visitar o Museu Arqueológico Pietro Griffo, com mais de 5 mil peças catalogadas.
Quer o pulo do gato? Fique hospedado no resort Villa Athena, super charmoso e com selo Small Luxury Hotels of the World. O hotel tem uma entrada direta para os templos e uma vista surreal, além de um restaurante aclamado na ilha. Recomendo!
Outros bons restaurantes em Agrigento são: Trattoria dei Templi, La Posata di Federico II, Pizzaria Sitari, Nodo.
NEVE NA SICÍLIA?
De Agrigento até Taormina são duzentos quilômetros de estrada. No caminho, algumas cidades convidam a uma parada. A primeira delas foi Enna. Lindamente debruçada sobre um penhasco, é a cidade mais alta da Sicília, com 942 metros.
Na antiguidade, ali era o local de culto a Deméter, a deusa da fertilidade. O templo dedicado à deusa ficava na Rocca Cerere pertinho do Castelo di Lombardia, construído no século XIII. Restam apenas as ruínas. Mas a minha surpresa maior foi encontrar as ruas de Enna cobertas de neve. Neve na Sicília? Sim.
E não só em Enna. Ao tentar subir até o topo do Monte Etna, esse sim altíssimo, com 3.370 metros, a neve impediu a passagem. Não foi dessa vez que consegui chegar na boca do vulcão mais ativo da Europa. Tentei... Fiz contato com duas agências especializadas nessa aventura e das duas ouvi que a nevasca intensa de fevereiro havia bloqueado a passagem.
No verão, um teleférico conduz a 2.900 metros, seguido de uma caminhada até a cratera. Não me resta alternativa. Preciso voltar para conferir de perto as agruras do “deus do fogo”. Uma peripécia tensa. É verdade! Na erupção de 2001 muita coisa foi consumida pela lava, inclusive o antigo teleférico. E pensar que tem muita gente corajosa que mora no pé da montanha. Tem inclusive um site -www.volcanodiscovery.com/etna/current-activity.html - para acompanhar a atividade do vulcão Etna que é Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 2013 e já serviu como pano de fundo para a gravação de Star Wars, episódio “A vingança dos Sith”.
ENFIM TAORMINA
Minha terceira base na Sicília (depois da Catânia e de Agrigento) foi a charmosa Taormina. Basta colocar os pés na cidade para entender o apelido de "Pérola do Mediterrâneo". Taormina é dona de vistas espetaculares que vão do mar ao vulcão Etna. Também guarda importantes tesouros arqueológicos, como o teatro grego que data do século III a.C.
Obviamente, é o cantinho da Sicília que mais recebe turistas. Além disso, a segunda temporada da série The White Lotus se passa em Taormina, o que trouxe ainda mais visibilidade à cidade. A principal locação da série é o hotel San Domenico Palace, um hotel de luxo do grupo Four Seasons. Ele ocupa um antigo mosteiro dominicano do século XV ocupado até 1866 e então transformado em hotel. Com 111 quartos, foi adquirido pelo Four Seasons, em 2021, repaginado e hoje é um dos hotéis mais badalados de Taormina dividindo esse posto com o Belmond Grand Hotel Timeo, com localização privilegiada ao lado do teatro grego, no centrinho histórico de Taormina, e com o Belmond Villa Sant'Andrea à beira-mar.
Caminhar pelas ruelas de Taormina penduradas na montanha significa suspirar mil vezes. Perca-se na Corso Umberto cheia de vitrines coloridas, visite a Duomo di Taorminna que lembra uma fortaleza, tome um sorvete na Piazza IX Aprile, desça de funicular até a Isola Bella, encante-se com o teatro grego, assista ao pôr do sol na Villa Comunale e jante no restaurante Villa Zuccaro.
Programe ir até Castelmolla, a menos de 1 km de Taormina, um vilarejo no alto do morro com visual cinematográfico.
Saiba que as ruelas são mínimas e o trânsito sempre intenso, mesmo durante a baixa temporada. Alugue um carro pequeno para facilitar as manobras. No inverno, por ter muitos hotéis e restaurantes fechados, o movimento cai “um pouco”. Apenas um pouco. E foi exatamente por isso que optei por conhecer a Sicília no final de fevereiro quando praticamente não havia turistas, uma vez que quando viajo, a cultura local genuína me interessa mais do que o calor do verão.
Com tempo vá até a Garganta de Alcântara, um rio próximo à Taormina que foi bloqueado pelo magma do Etna há milhares de anos e criou um belíssimo cânion com fendas de até 50 metros de altura e 10 de largura.
A CAMINHO DE PALERMO
As estradas da Sicília são sempre pontilhadas de surpresas. Indo de Taormina a Palermo não foi diferente. Quando surgiu a placa sinalizando Tindari, juntamente com um santuário e um sitio arqueológico, o carro quase entrou sozinho. Que belo desvio de rota. Tindari é um povoado minúsculo no alto de um penhasco, com vista deslumbrante do Golfo de Patti.
Ao estacionar o carro na Piazzale Belvedere uma seta apontava para as ruínas de Tyndaris, uma das últimas cidades gregas fundadas na Sicília, em 395 a.C. e a outra para o Santuário Madonna di Tindari, famosa pela imagem bizantina de uma Madona Negra.
O almoço no único restaurante da cidade foi divino. O chef nascido em Tindari havia trabalho muitos anos da França. Entendeu né? Uma parada perfeita, em todos os sentidos.
Então, seguimos até Palermo fazendo antes outro pitstop em Cefalu, uma cidade linda que também foi usada como locação para as filmagens da série The White Lotus.
Espalhada à beira-mar, Cefalu é famosa por ter uma imensa rocha chamada La Rocca, onde ficava o Templo de Diana, e por ter uma das mais bonitas catedrais árabe-normandas da Sicília.
A famosa Duomo começou a ser construída em 1131 com o propósito de ser o principal templo religioso da ilha. Mesmo que essa meta não tenha sido alcançada, a catedral é esplendorosa, com belíssimos mosaicos. Uma verdadeira obra bizantina em solo siciliano.
Palermo foi a brilhante capital do Reino da Sicília entre 1130 e 1816, período em que foi uma nação independente. Sua força vinha da localização estratégica a meio caminho entre Nápoles (Itália) e Túnis (Tunísia). Depois disso foi anexada à Itália, sofreu com bombardeios na Segunda Guerra Mundial, enfrentou problemas com a máfia, e é exatamente essa estrada sinuosa que desemboca no símbolo de sua força. A cidade é considerada Patrimônio Mundial da Unesco.
Para ter uma primeira visão da cidade vale circular durante uma ou duas horas de tuk tuk. Uma experiência divertida que dá uma ideia rápida do todo. Depois disso, caminhe pela cidade sem pressa olhando para cada detalhe arquitetônico, parando vez ou outra para tomar um sorvete, comer um cannoli (doce típico da Sicília) ou tomar um café.
E por falar em café recomendo que dê uma passada no Baldo, um personagem que fez fama em uma portinha pequenina na corso Vittorio Emanuelle 95 esquina com via Dri Chiavetierru, onde uma legião de fãs degusta o melhor café da cidade. Forte, bem forte, verdadeiramente italiano.
Então siga pela corso Vittorio Emanuelle desde a Porta Felice, que se abre para o mar, até a Porta Nuova (de 1535). Ao redor dali as surpresas esperam. Igrejas são muitas. Uma delas me deixou com o queixo caído, não pelo tamanho, mas pela delicadeza do seu interior, a Capela Palatina. Ela fica escondidinha dentro do Palazzo Reale, também chamado de Palazzo dei Normanni.
Esse suntuoso palácio é sede do poder desde o período de dominação bizantina e até hoje abriga o governo regional da Sicília. Seus salões e aposentos reais são exuberantes. No entanto, a Capela Palatina construída por Rogério II em 1132 é o verdadeiro tesouro. Seu interior é trabalhado em mosaicos incrustados em ouro, vidro e pedras semipreciosas. Um daqueles lugares em que você entra e tem dificuldade de sair, tal a beleza.
A dois quarteirões está a Duomo, construída em 1184, em vários estilos. Seu exterior é gótico, o portal sul é catalão, a decoração tem traços islâmicos, além de algumas partes mostrarem a presença normanda. No seu interior estão os túmulos dos reis da Sicília e do imperador Frederico II e sua família.
Várias outras igrejas também merecem uma visita: a Chiesa di Gesù, por ser uma herança dos jesuítas; a San Giovanni degli Eremiti por refletir nos domos em forma de bulbo a tradição islâmica; a Chiesa di San Domenico onde está sepultado o juiz Giovanni Falcone que lutou com determinação contra a máfia; as igrejas San Cataldo e Santa Maria del’Ammiraglio representantes do auge do Reino da Sicília e Santa Caterina pela beleza do seu interior.
Na Piazza Pretoria a história deixou um apelido bem estranho ao adereço central “Fonte da Vergonha”. A praça ficava em frente a um antigo convento de freiras enclausuradas quando recebeu de Firenze várias estátuas nuas que foram um verdadeiro desacato às moças.
Na calada da noite, elas desciam de seus aposentos para decepar os órgãos genitais das estátuas.
Também não deixe de visitar o Teatro Massimo de Palermo, o maior da Itália e o terceiro maior da Europa. Ele ficou famoso por servir como locação para cenas de O Poderoso Chefão.
Para comer bem em Palermo indico Ferro di Cavallo, Casa del Brodo dal Dottore, Mercado Vicciria, Pizzaria Assud a Santamarina e Pasticceria Costa.
Para ficar muito bem hospedado recomendo o Palazzo Santamarina, recentemente restaurado, e a espetacular Vila Igiea, um hotel do grupo Rocco Forte.
DESPEDIDA EM MONREALE
Quando a gente vai embora querendo ficar é sinal de que a viagem foi marcante. Nada melhor do que agradecer pela bela experiência. A sete quilômetros de Palermo fica Monreale, um pequenino vilarejo na montanha com um incrível mosteiro beneditino fundado em 1172, pelo rei normando Guilherme II. Hoje, a catedral do antigo mosteiro brilha entre mosaicos feitos por artistas bizantinos. Tudo encanta desde os painéis em bronze da porta com 42 cenas bíblicas, os mosaicos internos da nave central retratando cenas do Velho Testamento, a imagem do Cristo Pantocrator no altar-mor até as colunatas do claustro.
Ali agradeci envolta pela melhor energia e me despedi da Sicília prometendo voltar.
Não tive tempo de ir a Noto, Erice, Siracusa, Trapani, às ilhas Eólias das quais Panarea é a mais badalada, às ilhas Egadi das quais Favignana é a maior e às ilhas Pelagie sendo Lampedusa muito próxima de Malta. Tenho muitos motivos para voltar.
MELHOR ÉPOCA
A Sicília pode ser visitada em qualquer época do ano. Se quiser conhecer a ilha num momento mais tranquilo e com menos turistas vá de novembro a março. Caso queira mais movimento e temperaturas mais altas vá de abril a outubro, época mais quente.
ONDE FICAR HOSPEDADO
Catânia: Una Palace
Agrigento: Villa Athena (Small Luxury Hotels of the World)
Taormina: Belmond Grand Hotel Timeo, Belmond Villa Sant"Andrea, San Domenico Four Seasons, Villa Diodoro
Palermo: Palazzo Santamarina, Villa Igiea Rocco Forte
Sciacca: Verdura Resort
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