CALDEIRÃO CULTURAL DA ÁFRICA OCIDENTAL

O vento quente de abril confirmou minha chegada à África. A costa oeste, tão pouco visitada - Gana, Costa do Marfim, Serra Leoa, Guiné-Bissau, Gâmbia e Senegal - abria com timidez sua ancestralidade encoberta pelas mazelas, ainda não digeridas, do colonialismo. Era o início de uma daquelas viagens nada convencionais, costuradas por reflexão, aprendizado, transformação, curiosidade e por que não dizer “pitadas de apreensão”. Afinal estamos falando de uma região sabidamente infestada de piratas, o Golfo da Guiné. Não foi por acaso que ao me despedir dos meus filhos recebi a missão de mandar notícias “todos os dias”. Eu estava embarcando para desvendar uma face da África que eu pouco conhecia, além de Angola. Minhas andanças pelo mundo já tinham me levado para Tanzânia, Ruanda, Zâmbia, Zimbábue, Botsuana, Egito, Marrocos e África do Sul com experiências focadas na vida selvagem, na história antiga e no viés cultural. No entanto, o mergulho agora era mais denso, ligado aos assombros da escravidão de mais de 12 milhões de africanos.

Expedição com o navio SH Vega. (Credito: Marcio Silveira)

GANA

Acra, a capital de Gana, foi meu ponto de partida nessa rota oferecida pela empresa Swan Hellenic, denominada “Caldeirão Cultural da África Ocidental”. Fiquei hospedada uma noite no hotel Labadi Beach num bairro distante do centro, à beira-mar. Como opção mais luxuosa existe o hotel Kempinski. No dia seguinte, embarquei no navio SH Vega que jogou luz numa parte tão esquecida do mundo e me trouxe segurança para encarar essa aventura sob o lema: “Veja o que os outros não veem”.

A chegada, em plena madrugada na República de Gana, foi tranquila. Eu vinha de Lisboa com escala no Marrocos. Um motorista aguardava no saguão do aeroporto com aquela plaquinha que traz os nomes dos passageiros e sempre arranca um sorriso. Com passaporte e visto na mão entrei facilmente num dos países mais estáveis da África Ocidental, o que não significa que seja rico, bonito, muito menos limpo. Nem toda viagem traz uma perspectiva confortável. E essa era uma delas. Viagem de resgate, de reconhecimento e de conexão com um passado de gosto amargo, quando tantas pessoas foram levadas à força para os Estados Unidos, Caribe e inclusive para o Brasil.

A costa de Gana era anteriormente conhecida como Gold Coast pela quantidade de ouro, o que atraía os europeus. Na época áurea ganhou mais de 50 fortes e castelos. Um deles chamou minha atenção em especial. Foi o Castelo Elmina, com suas masmorras reminiscentes do antigo comércio não só de ouro e marfim, como infelizmente, de gente. Dali foram retiradas hordas de escravos entre os séculos XVI e XIX. Os que vieram para o Brasil formataram nosso DNA. A série documental “Sankofa, a África que te habita” retrata em 10 episódios a expedição do fotógrafo brasileiro César Fraga por lugares que refrescam nossa memória sobre o pesadelo da escravidão. 

Elmina é a edificação europeia mais antiga na África. O castelo foi construído em Takoradi, a aproximadamente 200 km de Acra, atual capital de Gana, em 1482 quando Cristóvão Colombo e Bartolommeo Diaz chegaram com dez caravelas para construir um marco do domínio português. O que iniciou como um porto, uma vila, um castelo e serviu de ponte entre África, Europa e América por mais de cinco séculos, hoje é um memorial, Patrimônio Mundial da Unesco, que não nos deixa esquecer desse capítulo desolador. Vi ali nossas raízes, me emocionei, fiquei chocada na “porta do não retorno” e pedi perdão pela estupidez da humanidade.

Nesse período, o território foi governado por Portugal, depois Holanda, Reino Unido e por fim, Gana, sendo a primeira colônia da África Ocidental a se tornar independente do Reino Unido, em 1957. Daí o idioma oficial ser o inglês, além de várias outras línguas africanas serem faladas.

Com forte tradição tribal, Gana é um país jovem, de economia relativamente forte (se comparada com a vizinhança) baseada na agricultura, exportação do ouro, cacau e mais recentemente, petróleo (desde 2010). Gana faz fronteira com Burkina Faso ao norte, Togo ao leste, Golfo da Guiné ao sul e à oeste Costa do Marfim. Tem população de 32 milhões de habitantes, numa área equivalente ao estado de São Paulo. Sua arquitetura traz uma mistura de edificações da época colonial e de núcleos africanos. Kofi Annan, ex-secretário geral da ONU nasceu em um desses núcleos em 1938, e foi laureado com um Prêmio Nobel da Paz em 2001.

Na região central do país, um dos principais atrativos naturais é o Parque Nacional Kakum. Estabelecido em 1931 como reserva, cobre uma área de 375 quilômetros quadrados e foi declarado parque nacional em 1992. Sua singularidade está no fato de ter sido criado por iniciativa da população local. É um lugar procurado para birdwatching, além de ter uma passarela em dossel, com 7 pontilhões que somam 350 metros de comprimento e conectam sete copas de árvores no centro da floresta tropical.

Curiosamente, enquanto circulávamos de van pelo país, observei caixões funerários que pareciam alegorias. Ao perguntar sobre o assunto para o guia que nos acompanhava, ele explicou que no momento da despedida, as famílias escolhiam um tema que retratasse a vida daquela pessoa, como um caixão-livro para um professor ou um caixão-tambor para um músico. Os velórios eram anunciados em grandes outdoors espalhados pelas estradas e nas rádios para atrair o maior número de amigos pois em Gana as famílias recebem doação financeira durante o velório para dar conta das despesas com o funeral e para reorganizar a vida da família. Uma tradução de solidariedade.

Para mergulhar ainda mais na cultura local vale experimentar a cozinha de Gana. Entre os pratos típicos destaca-se o peixe com arroz e legumes (tchepodjen), a banana da terra com dendê (fufu) e o acarajé. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Fomos presenteados de muitas maneiras pela Mama África.

Antes de seguir viagem vale comprar alguma peça num dos tantos mercados de artesanato como forma de contribuir com as comunidades locais. Barganhar, desde máscaras, esculturas, pinturas, tambores, bolsas, colares até roupas, faz parte! Observe o Kente, traje típico feito com tecidos produzidos artesanalmente.

De volta ao SH Vega, a cada retorno dos passeios, eu me sentia entrando em casa ao receber uma toalhinha refrescante, chá gelado e um sorriso de boas-vindas. A expertise da tripulação somada ao conforto de poder navegar por uma rota tão inóspita da África em um navio-boutique de apenas 75 cabines, lançado recentemente pela empresa britânica de cruzeiros Swan Hellenic, foram fatores decisivos para a realização dessa viagem. Era sonho antigo trilhar a costa oeste africana moldada pelo oceano Atlântico e que um dia, há milhões de anos, já foi conectada ao Brasil. Pois lá estava eu, encantada e inquieta, rumo ao segundo país da viagem.

COSTA DO MARFIM 

Para cobrir os 500 quilômetros que separam as cidades de Acra (Gana) e Abidjã (Costa do Marfim) naveguei durante toda a noite. Ao desembarcar na ex-colônia francesa chamada oficialmente de Côte D’Ivoire, a língua que mais ouvi foi o francês, mesmo que a independência tenha acontecido em 1960 e que a população cultive as tradições de mais de 60 grupos étnicos com uma profusão de línguas. O francês é o idioma oficial desses 30 milhões de habitantes.

Abidjã foi a capital do país até 1983 quando foi transferida para Yamoussoucro (mas continua exercendo várias funções administrativas). A cidade tem um belo skyline e bons hotéis como o Sofitel Ivoire, Pullman e Noom. Obviamente não fiquei hospedada na cidade por estar a bordo do SH Vega, apenas circulei de van pelas ruas. Mas aviso aos viajantes independentes que a Costa do Marfim comporta um voo solo. É um dos países mais seguros da África Ocidental, mesmo que sua vizinhança seja por vezes hostil.

Limita-se ao norte por Mali e Burkina Faso, a oeste pela Libéria e Guiné, ao sul pelo oceano Atlântico e a leste por Gana (de onde eu estava vindo e o único vizinho possível de ser visitado no momento). Desentendimentos nessa faixa da África, instabilidade política e corrupção são pautas frequentes. A própria Costa do Marfim já mergulhou em uma pesada guerra civil de 2002 a 2007, seguida de outra em 2011, quando foram implantadas muitas minas terrestres responsáveis por atrocidades. Embora tenha havido esforços para removê-las ainda existem áreas perigosas no país, o que compromete também a fauna, que já foi rica. Aliás o nome Costa do Marfim vem exatamente da grande população de elefantes que havia. No entanto, não mais. Ficou apenas o nome como lembrança. Hoje, a maior população de elefantes do continente africano está em Botsuana.

Apesar desses tropeços, a economia da Costa do Marfim é forte. Está baseada na produção agrícola, sendo responsável por 35% do suprimento global de cacau. Também produz muito café. Além disso, tem grandes depósitos de ferro, níquel, bauxita, manganês, ouro e mais recentemente viu na extração do petróleo uma indústria emergente. Não é à toa que os tentáculos da China e da Rússia andam espichados para aquelas bandas.

Espichado também estava meu olhar ao conferir a explosão de cores a cada quilômetro percorrido pela van que partira do porto com dois batedores abrindo caminho no trânsito caótico desde Abidjã até Grand Bassam, primeira capital da Costa do Marfim, hoje Patrimônio Mundial da Unesco. Que incrível circular pelas ruas dessa cidade colonial fundada em meados do século XVIII e ver vários de seus prédios abandonados pelo desprezo aos colonizadores. Eles contam sobre a relevância desse centro comercial de localização estratégica na costa do Golfo da Guiné e que assim permaneceu até a capital ser transferida para Abirdjã, em 1933.

Ao longo de sua história, a cidade foi palco de alguns eventos marcantes Em 1893, testemunhou um dos primeiros ataques franceses contra uma cidade africana, na chamada "Expedição de Brazza", logo depois, em 1896, foi abalada por uma epidemia de febre amarela, que matou muitos residentes e forçou a evacuação de outros. Em 1949, houve a famosa Marcha das Mulheres, num movimento anticolonial liderado por Marie Koré, para libertar seus maridos e filhos.

Passei apenas um dia na Costa do Marfim. Bem verdade que foi pouco tempo para entrar em camadas mais profundas de sua cultura, mas o suficiente para trazer lembranças marcantes dos sorrisos que recebi e das pessoas que cruzaram meu caminho.

Os dois próximos dias de viagem seriam “al mare”, sem desembarcar, atravessando a delicada costa da Libéria, que vive uma realidade desoladora depois de sofrer com guerra civil, epidemia de ebola e enfrentar graves problemas humanitários. Foi o tempo de desacelerar nas duas piscinas do navio, treinar na academia e curtir minha belíssima suíte com design escandinavo. A suavidade da navegação é garantida por poderosos estabilizadores projetados para expedições polares e com os quais eu já havia enfrentado o furioso Estreito de Drake numa expedição à Antártida.

SERRA LEOA

Eu estava com as horas contadas para um destino que me partiria o coração. Uma lágrima escorreu ao desembarcar em Freetown, a capital de Serra Leoa, e dar de cara com a miséria estampada em rostos cobertos de esperança. Um lugar que nasceu para celebrar a liberdade, como o próprio nome diz, mas ainda não cumpriu o seu papel. Mantém uma população - de mais de 8 milhões de pessoas aprisionadas pela fome e pela pobreza extrema, ocupando segundo a ONU um dos últimos lugares na classificação do Índice de Desenvolvimento Humano. Um tremendo contrassenso para um país que está entre os maiores produtores de diamante do mundo.

Leonardo DiCaprio foi o protagonista de Diamante de Sangue. O filme, lançado em 2006, retrata recortes do inferno vivido em Serra Leoa no final da década de 90, em plena guerra civil, quando uma tropa da FUR (Força Unida Revolucionária) invadiu uma aldeia da etnia Mende levando um pescador a um campo de mineração, onde foi obrigado a trabalhar. Lá ele encontrou um diamante cor-de-rosa, com cerca de 100 quilates. A partir daí se desenrola a trama que expõe ao mundo a triste realidade que existe por trás de um brilhante. O filme tem a missão de instruir que as pedras brutas extraídas ilegalmente em regiões de confronto, à base de trabalho escravo, alimentam as guerras da África e têm gosto de sangue. A partir desses fatos a ONU idealizou uma campanha mundial de conscientização para reduzir o consumo de diamantes. Do contrário, a beleza e a ostentação continuarão financiando a destruição de Serra Leoa e a materialização do inferno na Terra.

Pegando o gancho do filme, os povos Temne e Mende (etnia de um dos personagens) foram os primeiros habitantes de Serra Leoa. Tiveram sua história influenciada tanto pelos colonizadores europeus como pelos comerciantes árabes. Daí vem a influência religiosa que predomina no país: o islamismo (mais de 60%). Eles se dizem tolerantes com a diversidade religiosa, no entanto, Serra Leoa tem uma das mais altas taxas de mutilação genital feminina do mundo. Suspeita-se que 9 entre 10 mulheres tenham sido submetidas a essa violência. Durante o surto de ebola que ceifou muitas vidas entre 2014 e 2015 houve uma tentativa do governo de reduzir essa prática de mutilação. Além de Serra Leoa, a epidemia atingiu duramente os países vizinhos Libéria e Guiné e, em menor proporção, Congo e Nigéria.

A história recente desse pequeno país africano infelizmente foi marcada por violentos conflitos civis desde 1990 até 2002. Os confrontos entre as forças do governo e os guerrilheiros da Frente Revolucionária Unida (RUF) eram constantes. Serra Leoa - cujo nome advém da semelhança da serra vista do mar, com o formato de uma leoa - está em pleno processo de reconstrução e desenvolvimento, enfrentando sérios desafios como pobreza, desemprego e corrupção. 

A preocupação maior da população está ligada a uma questão urgente, sobreviver. A expectativa de vida no país é de 45 anos, uma das mais baixas do mundo. As condições de vida são precárias com esgoto a céu aberto, sistema de saúde fraco, preocupação constante com a malária, ou seja, a vida de 2/3 da população está abaixo da linha da pobreza. A maioria dos habitantes vive com 1,25 dólar por dia. Atravessar as ruas da cidade e observar pela janela do carro as crianças magras pedindo comida e batendo na barriga em sinal de fome é de rasgar a alma. Serra Leoa não é notada pelo mundo. Não está representada na área política mundial e não tem impacto na economia global. 

Apesar de tantos desafios, eles trazem um sorriso estampado no rosto e vestem suas melhores roupas para colorir as ruas. O país tem investido na melhoria da infraestrutura e na educação, pois menos de 40% da população do país é alfabetizada. Embora o inglês seja a língua oficial, em função da colonização britânica, a mais falada, por 98% da população, é o crioulo. No total são 16 grupos étnicos, cada um com sua própria língua/dialeto.

Serra Leoa é conhecida pela música e pela dança, incluindo o Bubu, uma dança comum em ocasiões festivas com movimentos que lembram a capoeira e o samba. O país também é famoso por sua comida, incluindo pratos como arroz de jollof, ensopado de amendoim e feijão-de-corda. Mais uma vez nossas raízes se traduzem nos sabores e no gingado.

A vida selvagem da Serra Leoa inclui animais, como chimpanzés, elefantes, leões, hipopótamos e crocodilos. Infelizmente, o país também é conhecido pelas minas terrestres, que foram deixadas após décadas de conflitos civis. Essas minas terrestres representam uma ameaça para a vida dos habitantes, para a fauna e dificultam o acesso a recursos importantes. Vi pelas ruas muitas pessoas mutiladas. Triste realidade.

As cidades mais populosas de Serra Leoa são Freetwon (1/5 da população), Bo, Kenema e Koidu. A Ministra do Turismo Memunatu Pratt recebeu nosso grupo no Monumento da Cultura e da Paz, em Freetown, onde falou sobre a alegria de reabrir o país após um longo período de reclusão causado pela pandemia de Covid-19. Como embaixadores visitamos o Museu do Trem, que expõe uma coleção de antigas composições britânicas agora desativadas e visitamos a primeira universidade da costa oeste africana construída em 1827. Old Fourah Bay College era conhecida como “Atenas da África Ocidental” tal sua importância.

Também estivemos no Museu Nacional para conhecer um pouco mais sobre a cultura local, passamos pela “Cotton Tree”, símbolo histórico de Freetown, uma grande sumaúma que, segundo a lenda, abrigou milhares de escravos libertos em 1792, dando início a história de Freetown. Por fim almoçamos em Tokeh Beach, no hotel The Place, ao som de um batuque muito familiar. 

Saiba que o período de chuvas vai de maio a novembro. Em agosto de 2017, fortes tempestades tiraram a vida de centenas de pessoas em Freetown e regiões próximas. Portanto, opte pelo período seco, de dezembro a abril. Minha viagem aconteceu no início de abril e tive o privilégio de ser acompanhada pelo sol.

Visitar esse país era um pensamento muito distante. A expedição da Swan Hellenic reconectou Serra Leoa com o mundo e fez cumprir o mais nobre papel do turismo: semear esperança. Aliás esse foi o itinerário inaugural do SH Vega, na rota Cape Town (África do Sul) - Tenerife (Espanha), dividida em 4 partes, para o reposicionamento anual do navio do Polo Sul ao Polo Norte. Em muitos cruzeiros esse trajeto é feito sem passageiros para poupar esforços. Patrizia Zito, esposa do CEO da empresa, foi peça fundamental na sedimentação desse itinerário que já pode ser reservado para o próximo ano.

De volta ao navio, depois do soco no estômago que foi conhecer Serra Leoa, tive febre. Minha imunidade caiu e fui acompanhada pela Dra. Sheila Ramos e pela enfermeira Inelsa. Fiz teste de malária, Covid-19 e gripe. Testei positivo para Influenza e precisei ficar isolada no meu quarto. Por sorte havia um dia inteiro de navegação a caminho de Guiné-Bissau. Foi o tempo que meu corpo pediu para se recuperar.

GUINÉ-BISSAU

Num domingo de céu azul cheguei ao arquipélago de Bijagós, um tesouro natural na Guiné-Bissau, formado por mais de 80 ilhas das quais tive o privilégio de visitar seis, em três dias. Bolama foi a primeira delas, uma vez que o continente não entrou em pauta nessa viagem por questões políticas.

Bolama foi a capital da chamada Guinea Portuguesa, de 1871 a 1941, até ser transferida para Bissau devido a escassez de água potável. Dos 40 mil habitantes restam apenas 4 mil. A antiga cidade-colonial agora tem ares de cidade-fantasma. Os prédios foram abandonados, mais uma vez em desprezo aos colonizadores e hoje, já se cogita sua restauração pelo viés histórico e pelo potencial turístico. 

Ao andar pelas ruas quase vazias da cidade ouvi ao longe uma música que chamou minha atenção. Era a missa de domingo sendo rezada em português na Igreja de São José e acompanhada pelo rufar de tambores. Lindo ver a igreja lotada de pessoas vestidas em seus melhores trajes, de mãos dadas, entoando canções na minha língua. Eternizei o momento entre as melhores lembranças da África Ocidental.

Em Canhabaque, na Ilha Roxa, entrei num mundo paralelo e tive outro momento de conexão profunda com uma comunidade africana isolada. Depois de percorrer uma trilha de dois quilômetros mata adentro, entre cajueiros e mangueiras, crianças apareceram por todos os lados nos conduzindo ao terreiro de areia onde uma dança cerimonial chamada Vaca Bruto, um rito de passagem dos meninos para a vida adulta, estava prestes a acontecer. Eis uma comunidade onde as mulheres têm papel importante e ditam muitas das regras, uma sociedade matriarcal. 

Na manhã seguinte, foi a vez de conhecer Bubaque, a capital do arquipélago. O passeio pelo vilarejo dessa vez foi de tuk-tuk. A ilha tem alguns hotéis, escola, igreja e mercado de artesanato. É bem estruturada. Encontrei turistas. Poucos, é verdade. Um casal canadense e um homem inglês estavam hospedados na ilha.

Outras paradas em Guiné-Bissau foram na Ilha do Meio, desabitada, onde caminhamos por uma praia belíssima de areia branca, mergulhamos num mar muito azul  e sentamos na sombra dos baobás; em Poilão o passeio foi noturno para ver as tartarugas desovando na praia; já em Imbone, na Ilha de Orango havia a possibilidade de ver os fofíssimos hipopótamos-pigmeus, mas não foi dessa vez. Afinal, a natureza não é uma ciência exata.

A despedida de Guiné-Bissau foi na ilhota de Kere, onde a portuguesa Sonia e o francês Laurent Durris, pais de um bebê de um ano, mostram sua paixão pelo Kere Ecolodge, especialmente ao falar sobre a rede de apoio que têm dos moradores locais. Ela diz que se sente parte de uma grande família e ali quer viver para sempre, apesar do isolamento. Sônia jogou tarô para uma hóspede italiana do navio que saiu impressionada com sua sensibilidade.

Ilha de Kere. (Crédito: Marcio Silveira)

GÂMBIA

Na sequência, a bela surpresa ficou por conta da Gâmbia, menor país do continente africano tanto em tamanho (11 mil Km²) como em população (2 milhões de pessoas). O país foi parte do Império de Mali e do Império Wolof antes de ser colonizado pelos portugueses no século XV. Mais tarde, foi controlado pelos britânicos – de onde vem o inglês como língua oficial – até alcançar independência em 1965. Depois disso enfrentou golpes de estado e com a eleição de Adama Barrow, em 2016, tem conseguido maior estabilidade.

É interessante observar o desenho da Gâmbia no mapa. É um país estreito e longo, que acompanha o curso do rio Gâmbia. Tem 80 quilômetros de costa atlântica e é cercado pelo Senegal. Sua capital é Banjul, a moeda local é o Dalasi e a religião predominante é o islamismo (80%), sendo bem tolerantes com as vestimentas dos visitantes.

Um país limpo, leve e colorido, com economia baseada na pesca, na agricultura e no turismo. É seguro, e por isso, acolhe viajantes independentes. Dê uma olhada no hotel Coco Ocean Resort caso tenha interesse em ir até lá. No entanto, recomendo fortemente que faça essa viagem com a Swan Hellenic.

Em um dia conheci muito da capital Banjul. A primeira parada foi na Catedral de São José, uma igreja católica construída em 1898 por missionários franceses. No Museu Nacional da Gâmbia entendi melhor a história pré-colonial e assisti uma performance de Kankurang. Esse ritual é praticado pela comunidade Mandinka para marcar a entrada dos meninos na vida adulta e está associado a cerimônia de circuncisão. As indumentárias são interessantíssimas, apesar de assustadoras, e o ritmo lembra muito o Olodum. Mais uma vez a conexão Brasil-África se fez presente.

O mercado de Banjul não pode ficar de fora. Entre barracas de comida, artesanato e roupas, é interessante observar que as máquinas de costura são pilotadas especialmente pelos homens e os sorrisos são uma constante. Eles adoram ser fotografados.

Minha aventura da tarde foi molhada. De Zodiac atravessamos boa parte do rio Gâmbia até alcançar uma ilhota onde está o histórico Forte James, construído pelos ingleses, no século XVI como centro de comércio de escravos no período colonial. A loucura maior é perceber que a ilha é minúscula e abrigava 80 pessoas, além dos escravos que ali ficavam confinados num espaço inacreditável, praticamente sem acesso a recursos básicos como água ou alimentos. Em 2003, a ilha foi declarada Patrimônio Mundial da Unesco em reconhecimento ao fator histórico e teve o nome trocado de Ilha James para Kunta Kinteh em honra a esse personagem que foi escravizado e lutou com força pela liberdade.

De volta ao navio, a equipe formada principalmente por filipinos, jamais economizava em gentileza. Os bartenders Grace, Josy e James serviam todo tipo de bebidas e drinques personalizados, sempre à perfeição, sem nunca esquecer os nomes dos passageiros. Está certo que esse é um navio-boutique e o número de hóspedes costuma ficar ao redor de 100. Mesmo assim, que memória!

SENEGAL

A parada seguinte foi no Senegal. Dakar, o ponto final do Rali Paris-Dakar, tantas vezes interrompido pela falta de segurança nas areias desérticas da Mauritânia, também seria meu ponto final. Mas, uma inquietude me perseguia. Eu não estava pronta para desembarcar. Eu tinha visto os que outros não veem. A viagem tinha sido tão intensa e transformadora que um tempo de sedimentação era necessário. Eu estava girando num turbilhão de sentimentos. Foi quando Patrizia Zito, a “fada madrinha” da engrenagem dessa rota, com sua habitual sensibilidade veio trocar umas palavras comigo sugerindo que eu continuasse a bordo no trajeto seguinte – do Senegal (Dakar) ao Tenerife (Espanha). A resposta imediata foi sim! E só sei dizer que essa imersão na África Ocidental foi uma das viagens mais marcantes da minha vida.